Por Joaquim Fanton*
Quando fui trabalhar na Telebrás, a empresa estava instalada no Edifício Embaixador, no Setor Comercial Sul de Brasília. A Divisão de Engenharia de Redes Externas funcionava num pequeno conjunto do primeiro andar, constituído de sala e banheiro. A sala era pequena, a muito custo comportava seis mesas e uma prancheta. Por sorte, o banheiro possuía box para chuveiro. Na época, não havia computadores pessoais e a gente redigia à mão relatórios, bilhetes e memorandos. Quando necessário, a secretária da divisão datilografava. Todos os documentos eram guardados em arquivos de aço que ficavam no banheiro.
Uma tarde, o telefone tocou. O general Alencastro queria falar comigo. Entre mim e o presidente, havia dois níveis, mas a organização adotava alguns procedimentos militares na época. Caso julgasse ser importante, o presidente se comunicava diretamente com quem quisesse. Subi as escadas correndo. O general – como era conhecido – queria me entregar uma caixa de emenda. Contou que ela era usada por uma empresa do interior de São Paulo que havia sido recentemente adquirida pela Telebrás. O fabricante da caixa era amigo do ministro. Pediu-me que analisasse cuidadosamente o produto e visse se o mesmo poderia ser usado nas empresas do sistema Telebrás.
Um ano antes, quando ainda trabalhava para a Telesp, tinha viajado para os Estados Unidos e ficado por lá durante 12 semanas. O objetivo era me atualizar em produtos e práticas de construção. Visitara empresas de telecomunicações em Los Angeles, Washington, Nova York e Chicago. As visitas produziram uma boa coleção de desenhos, especificações, manuais e amostras de materiais. Na passagem por Chicago, havia visitado dois fabricantes de acessórios de redes, Cook Electric em Morton Grove e Reliable em Franklin Park e tinha juntado na coleção uma caixa de emenda americana, muito parecida com o esquema de patente da foto.
Uma das primeiras providências que tomei, assim que comecei a trabalhar na Telebrás, foi criar um grupo de trabalho encarregado de desenvolver uma caixa de emenda brasileira. A comissão contava com representantes de várias operadoras. A coordenação técnica ficou a cargo do Laboratório de Desenvolvimento da Telerj.
No dia em que o general me entregou a caixa, o grupo estava na fase final dos trabalhos. Eu conhecia todos os pontos importantes da caixa: fixações, ancoragens, vinculação elétrica, detalhes de fechamento, furos para fixação de blocos terminais, entradas de cabos e de fios drop, braçadeira anti-retração, pingadeiras, etc.
Por se tratar de pedido pessoal do general, inspecionei a caixa com o máximo de cuidado. Conclui que ela precisaria receber pelo menos 15 melhorias antes de poder ser usada. Feito isto, mandei guardar a caixa. No box banheiro, obviamente!
Dias depois, bem no final da tarde, recebi a visita do empresário, que veio acompanhado de dois filhos, um deles engenheiro recém-formado. Pediram desculpas pelo atraso, pois “estavam conversando com o general”. Fingi que não entendi a indireta e peguei a caixa de emenda no banheiro. Os visitantes sentaram-se na minha frente, bem apertadinhos. De forma didática, fui apontando, um a um, os detalhes que precisavam ser melhorados. A cada item repassado, os visitantes confirmavam que tinham entendido e o filho engenheiro anotava num caderninho o que precisaria ser feito. A reunião se arrastou por mais de uma hora. No final, combinamos uma data para que eles me trouxessem uma amostra modificada. Nesse ponto da reunião, tirei da gaveta uma cópia heliográfica com o desenho elaborado pelo grupo de trabalho coordenado pela Telerj. A CEV era uma cópia escarrada da caixa americana, adaptada aos nossos cabos. Comentei que o projeto contemplava todos os detalhes que havíamos repassado. Sugeri que levassem o desenho e que fizessem um estudo, para ver se não era mais simples adotar a caixa nova, do que refazer inteiramente a existente. Mas tomei o cuidado de deixar claro que eles teriam liberdade de usar a caixa deles, desde que a modificassem, para ficar dentro das especificações.
Foi quando um deles lembrou que tinham mais um compromisso: iam jantar com o ministro. Ao sair, me agradeceram muitíssimo! Na manhã seguinte, no início do expediente, meu ramal tocou. Era o diretor técnico me pedindo que fosse urgente até a sala dele.
“Fanton, o que aconteceu na reunião de ontem? O ministro acaba de ligar para o general. Os empresários de São Paulo disseram a ele que um molecote que nós contratamos jogou a caixa deles na privada! O ministro mandou te demitir”. Com a emenda embaixo do braço e acompanhado do meu chefe direto e do diretor técnico, fui até a sala do presidente. Ainda assustado, repassei para os três tudo que tinha sido dito e combinado na reunião. Assim que terminei, o general já tinha tomado a sua decisão. Telefonou para o ministro e disse: “A reclamação não procede, nosso menino está coberto de razão. A caixa do homem não tem a mínima condição de ser usada se não passar por melhorias”.
Imagino que tenha havido uma conversa séria entre ministro e empresários, pois esses decidiram produzir a nossa CEV. Quando o primeiro lote ficou pronto, fui convidado para ir conhecer a nova fábrica. O incidente nunca mais foi mencionado. A CEV começou a ser vendida e a aceitação foi grande. As vendas superaram as expectativas. Uns dois anos depois do início de produção, minha divisão promoveu um evento numa capital nordestina. Compareceram muitos empresários. Entre eles, estava o filho engenheiro do empresário, que havia se tornado o presidente da empresa. Encontramo-nos à noite numa cervejaria de praia. Tomamos umas geladas e a sinceridade aflorou, “in vino veritas”. Ele acabou declarando para quem quisesse ouvir: “Fanton, você é um cara tão legal e nós quisemos te ferrar! Fomos dizer ao ministro que você tinha jogado nossa emenda na privada. Você teria toda a razão se tivesse feito isso. Nossa emenda era mesmo uma porcaria”.
Já se passaram 40 anos e, surpreendentemente, a CEV continua em uso. Um fenômeno! Para confirmar o que escrevo é só digitar “caixa de emenda ventilada” no Google. Vão aparecer as caixas CEV e seus vários fabricantes. Existem alternativas melhores no mercado. Mas, por serem mais sofisticadas, são mais caras. Assim como outros produtos que passaram a ser usados pelas concessionárias depois das privatizações, muitas compras são decididas no exterior, pois envolvem acordos de parcerias internacionais. Mas a CEV será usada enquanto existir cabo aéreo metálico, eu aposto. Antes que me esqueça, na viagem aos EUA em 1973, aprendi uma regra de ouro com um gerente de cabelos brancos, que aproveito para repassar:
Se alguém lhe oferecer uma novidade tecnológica, faça duas perguntas: é melhor? É mais barato?
Duas respostas sim: adote o produto sem medo. Um único não: esqueça o assunto e fique com o que tem, até que apareça alguém com dois sim.
* Joaquim Fanton é engenheiro eletricista pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com 38 anos de experiência em redes ópticas. Foi engenheiro de redes da Companhia de Telecomunicações do Paraná (Telepar), da Telecomunicações de São Paulo (Telesp), da Telebrás e do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD). Hoje, atua como consultor da RNP e participa da implantação de redes metropolitanas em fibra óptica, no âmbito do Programa Cidades Digitais. Ao percorrer o interior do país, acumulou histórias que serão compartilhadas no site da RNP.[[{“fid”:”6621″,”view_mode”:”default”,”fields”:{“format”:”default”,”field_file_image_alt_text[und][0][value]”:”Fanton”,”field_file_image_title_text[und][0][value]”:”Fanton”},”type”:”media”,”link_text”:null,”attributes”:{“alt”:”Fanton”,”title”:”Fanton”,”height”:653,”width”:641,”style”:”width: 100px; height: 102px; float: right;”,”class”:”media-element file-default”}}]]